Descrição

Sobre morar fora de casa - Volume I

E tudo acontece porque a gente mora fora e é capaz de qualquer coisa pra chegar em casa. A gente acorda às 3 da manhã, a gente sobe uma ladeira de paralelepípedo carregando dúzias de roupa numa mala de rodinha, a gente chora no guichê porque é muito injusto que a última passagem sem janela do último ônibus tenha sido vendida pra velhinha de bengala do seu lado e não pra você.

A gente deixa pra trás o encontro com aquele carinha super legal, o boteco com os amigos que não vê há mais de um mês – ou até vai e convence algum deles a te levar pra rodoviária a tempo de pegar o primeiro ônibus do dia seguinte –, inventa desculpas absurdas no trabalho, na faculdade, ou em qualquer lugar que te impeça de chegar a seu destino.

A gente atravessa quantas cidades e rodoviárias for preciso, a gente vai trabalhar de mala só pra poder ir embora direto e sim, a gente calcula, faz um monte de x no calendário e briga por cada feriadozinho pra que ele emende e fique maior nem que seja só por mais 12 horas, e definitivamente não admite que a sua semana tenha que existir em outra cidade há quilômetros de distância.

E quando chega em casa? Ah, aí é o momento de deitar no sofá com os dois pés pra cima, de acordar e arrumar a cama só depois do almoço, de desligar o despertador e, dependendo do andar da semana, de desligar até o telefone! São aqueles dias fantásticos em que a gente não vai cozinhar e vai se ver temporariamente livre da comida congelada, do macarrão instantâneo, do leite em pó e do suco de saquinho.

É hora de usar o telefone fixo de casa pra reativar aqueles amigos que acham que a gente morreu, ou que também moram fora e, há tanto tempo, que não dá pra ter lá muita certeza se eles ainda estão vivos.

Quando se está morando fora de casa, todos aqueles points que você achava que conhecia muito bem mudam de lugar com uma rapidez incrível, suas companhias inseparáveis ganham novas companhias inseparáveis, sua mãe troca de sofá sem te avisar, aquelas criancinhas bonitinhas e bochechudas que babavam no seu colo crescem mais rápido do que o tempo que você leva pra conseguir um aumento, e o vizinho lindo do 3º andar casou, tem gêmeos e ficou assustadoramente estranho e careca.

Nem o guarda-roupa é mais o mesmo. Todo o investimento feito há menos de um ano já ficou ultrapassado, e essa nova vida de testes culinários e a descoberta do quanto a salada é mais barata, fácil de fazer e ainda fica bonitinha no prato reduziu as medidas a tal ponto que aquela calça jeans de estimação ficou quatro números maior em menos de um mês.

A conta de telefone cresce como nunca, a internet vira um vício e uma fonte de notícias muito mais importante que qualquer jornal, e tudo de mais imperdível e fantástico que poderia acontecer na sua vida social acontece no Fim de Semana Não, ou seja, aquele em que não dá pra ir pra casa. Porque a regra é mais ou menos assim: Fim de Semana Sim (vamos!), Fim de Semana Não (ok, ficamos), e não dá pra ficar trocando assim sem mais nem menos. E é aí que a gente perde programações, reencontros e reuniões de família. Tudo por causa do Fim de Semana Não. E tudo porque a gente mora fora.

Mas com o passar do tempo é possível tirar lições valiosíssimas dessa situação, como:

1 – Não dá pra ficar acumulando milênios de roupa suja para lavar na máquina da sua mãe (é quando você descobre a alegria de botar a música no último volume e dá adeus às calorias lavando sua roupa a mão);

2 – Jamais lave a sua toalha branca com a sua calça de sarja preta (também não jogue água sanitária quando isso acontecer);

3 – Vestidos indianos soltam tinta. Muita tinta;

4 – Alface e feijão no mesmo potinho não sobrevivem a uma viagem no final do verão;

5 – Muito cuidado ao transportar pó compacto solto em uma mala por mais de 2 horas;

6 – 2 feriados gigantes e maravilhosamente seguidos no calendário não significam necessariamente 2 oportunidades gigantes e maravilhosamente seguidas de ir para casa;

7 – Rodoviária em véspera de feriado é um local de muito risco, muita gente e poucas passagens;

8 – não traga da geladeira da sua casa mais comida do que o seu congelador ou o prazo de validade é capaz de suportar;

9 – Não aceite de forma alguma que alguém ponha queijo fresco na sua mala. Nem que seja só um pedacinho, nem que ele esteja lacrado e mesmo que tenha sido um presente muito carinhoso da sua tia láááá do sul de Minas. Não aceite;

10 – Tenha uma outra manicure e cabeleireira de confiança para casos extremos. Nunca se sabe quando não vai dar tempo de correr pra casa e pintar a unha com aquele vermelho tom rubi que só a sua manicure oficial tem (ou é o que você pensa).

Mas é desse jeito que a diva aprende, coleciona histórias, troca suas trilhas sonoras, encontra novos caminhos, se perde um monte de vezes, muda de ideia outro monte de vezes, e vai aprendendo a lidar com quase todas as situações estranhas que aparecem. Porque a gente não tem comprovante de residência (ou tem bem uns três), porque a gente precisa de carona, porque a gente chora com saudade de casa e porque, tudo porque, a gente mora fora. Ou como o Pato Fu já cantou uma vez: “Olha eu não sou daqui, me diga onde estou...”